Das outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso e da destinação dos recursos para a criação de espaços públicos

 

Revista Brasileira de Direito Urbanístico – RBDU
Belo Horizonte, ano 5, n. 8, jan./jun. 2019

Das outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso e da destinação dos recursos para a criação de espaços públicos

Ilka Suemi Nozawa de Oliveira

 

Resumo: A ausência de um adequado planejamento urbano para as cidades ocasionou o crescimento desordenado. Espaços públicos estão se tornando cada vez mais comercializados e substituídos por edifícios privados. Em áreas definidas como de interesse social e em regiões mais periféricas das cidades quase não há investimento em infraestrutura, tampouco há garantia de espaços públicos verdes. Alinhados com o Direito à Cidade, espaços públicos urbanos proporcionam melhor qualidade de vida das pessoas, bem-estar e dignidade, auxiliam na coesão e inclusão social, geram equidade, melhoram a segurança, além de estarem associados às ações necessárias à sustentabilidade ambiental. Para a criação de espaços públicos mais verdes com menor onerosidade aos cofres públicos, é possível que recursos provenientes da cobrança de outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso sejam destinados para esta finalidade. Com isso, o presente estudo visa apresentar orientações e pactos celebrados em conferências internacionais, assim como apresentar a legislação urbanística que fundamenta a criação de espaços públicos verdes e em áreas de interesse social e regiões periféricas das cidades, em cumprimento à função social da cidade.

Palavras-chave: Espaços públicos. Direito à cidade. Outorga onerosa do Direito de construir e de alteração de uso. Destinação dos recursos.

Sumário: Introdução – 1 Do direito a espaços públicos de qualidade como um dos componentes do Direito à Cidade – 2 Diretrizes da política urbana e instrumentos jurídicos que possibilitam a cobrança de contrapartidas urbanas – 3 Origem histórica da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso e a relação com a criação de espaços públicos – 4 Da cobrança de outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso – 5 Da destinação dos recursos das outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso para criação de espaços públicos – 6 Conclusão – Referências

 

Introdução

No Brasil, na última década houve significativo aumento populacional especialmente nas metrópoles e cidades. Entre os anos de 1960 e 2010, o Brasil cresceu aproximadamente 402%, passando de 32 milhões para 160 milhões de pessoas vivendo nas cidades.1 Mais da metade da população mundial vive em cidades, sendo que estudos da Organização das Nações Unidas – ONU apontam que este número deverá ser elevado para dois terços até 2050 (DESA – UN Department of Economic and Social Affairs, 2017).

O processo de urbanização no Brasil nos últimos 50 anos foi de concentração urbana e de uso e ocupação do solo principalmente apoiado no desenvolvimento econômico norteado pela intenção de progresso sem o devido planejamento prévio para o crescimento das cidades e, portanto, sem a adequada intervenção do Estado em políticas urbanas eficientes, o que resultou em processo acelerado de ocupação desordenada em periferias, principalmente em regiões metropolitanas, sem implantação de infraestrutura mínima e adequada, tampouco de espaços públicos de qualidade.2

Se de um lado, a ausência de um adequado planejamento urbano para as cidades ocasionou o crescimento desordenado, de outro lado, houve a consolidação de um mercado imobiliário restritivo e especulativo que elevou o preço da terra em áreas urbanas, onde espaços públicos estão se tornando cada vez mais comercializados e substituídos por edifícios privados ou semipúblicos. Nas duas configurações de ocupação, seja na modalidade de ocupações irregulares em que não houve o respectivo planejamento para os espaços públicos, seja na outra forma de configuração espacial marcada pelo crescimento exponencial do mercado imobiliário e especulativo que elevou o preço da terra especialmente nas grandes metrópoles, espaços públicos foram deixados em segundo plano.

Vale destacar que “O modelo de cidade ideal teve como paradigma a segregação e a diferenciação hierárquica dos espaços, às quais se associa um diferencial de preço para o mercado imobiliário”.3 A criação de espaços públicos melhora significativamente a qualidade de vida das pessoas, proporciona bem-estar e dignidade, auxilia na coesão e inclusão social, gera equidade, melhora a segurança, além de estar associada às ações necessárias à sustentabilidade ambiental para preservação das presentes e futuras gerações.4

A importância do tema está alinhada com tratados e conferências internacionais, cabendo mencionar que o Grupo de Trabalho Aberto da ONU encarregado pela elaboração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2016-2030 propôs um décimo primeiro objetivo que consiste em “Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”. Uma das metas do Objetivo 11 é “até 2030, garantir acesso universal a espaços verdes e públicos seguros, inclusivos e acessíveis, especialmente para mulheres e crianças, pessoas idosas e pessoas com deficiência”.5

Assim, considerando a importância do tema, o objetivo deste estudo é analisar alternativas para a criação de espaços públicos de qualidade, especialmente por meio da utilização de recursos financeiros obtidos da arrecadação de contrapartidas urbanas de outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso, as formas de controle e participação popular para a correta destinação dos recursos ao cumprimento da função social da cidade conforme a consecução da finalidade prevista no Plano Diretor.

Desta forma, nos tópicos a seguir serão abordados os temas: (i) do direito a espaços públicos de qualidade como um dos componentes do Direito à Cidade; (ii) diretrizes da política urbana e instrumentos que possibilitam a cobrança de contrapartidas urbanas; (iii) origem histórica da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso e a relação com a criação de espaços públicos; (iv) da cobrança de outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso; (v) da destinação dos recursos das outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso para a criação de espaços públicos; seguido ao final da apresentação de (vi) conclusão.

 

1  Do direito a espaços públicos de qualidade como um dos componentes do Direito à Cidade

A imagem de uma cidade está intimamente ligada à forma de planejamento dos espaços públicos, pela definição de suas ruas, praças, jardins, parques, calçadas que definem sua própria paisagem urbana. Os espaços públicos são essenciais para a vida urbana, são os locais de circulação, de interação e de conexão entre os indivíduos, são espaços de livre acesso de propriedade e uso público, podendo ser abertos ou fechados, incluindo parques, ruas, calçadas, caminhos que ligam parquinhos de recreação, mercados, praias, escolas, bibliotecas entre outros (MATOS, 2010, p. 18 e 19).

Para Jacobs (2014):

[…] espaço público é utilizado para circulação pública geral de pedestres. É um espaço em que as pessoas se movimentam livremente, por livre escolha, no percurso de um lugar a outro. Ele inclui as ruas, vários dos parques menores e às vezes os saguões de prédios, quando usados livremente como área de circulação.6

Segundo Saule Júnior (2014):

A perspectiva da existência de cidades justas, democráticas, sustentáveis e humanas passa pelo reconhecimento e adoção do direito à cidade como um paradigma político e cultural para a reconstrução de nossas cidades nas suas dimensões políticas e culturais em especial.7

Saule Júnior (2014) na mesma obra aponta que:

O Direito à Cidade vem caminhando em uma rota ascendente como paradigma para o estabelecimento e cumprimento de compromissos e medidas que devem ser assumidos pela sociedade civil, pelos governos locais e nacionais, parlamentares e pelos organismos internacionais, para que todas as pessoas vivam com dignidade em nossas cidades.8

Neste contexto, o Direito à Cidade pode ser compreendido como sendo “um direito ao usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios da sustentabilidade, da democracia, da equidade e da justiça social.9 A respeito do Direito à Cidade, conforme definição trazida no documento preparatório à Conferência Internacional Habitat III,10 denominado “Policy Paper (2016)”:11

O Direito à Cidade engloba todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais consagrados em tratados, pactos e convenções internacionais existentes de direitos humanos. De acordo com a Declaração de Viena (1993), clama-se por uma implementação universal, interdependente e inter-relacionada dos direitos humanos.

No mesmo documento, ao considerar os direitos humanos reconhecidos internacionalmente,

O Direito à Cidade considera as cidades como bens comuns, prevendo assim o respeito e a proteção dos direitos humanos a todos; o pleno exercício da cidadania de todos habitantes; a dimensão social da terra, propriedade, e bens urbanos em cidades e assentamentos humanos; participação política e gestão de cidades de forma transparente e responsável; economias inclusivas, com direito a trabalhar e assegurar a subsistência; gestão responsável e sustentável dos bens comuns (ambiente natural, ambiente construído e histórico, bens culturais, fontes de energia, etc.); espaços públicos e instalações comunitárias suficientes, acessíveis e de qualidade; cidades sem violência, particularmente para mulheres, meninas, e grupos em desvantagem; a promoção da cultura como alavanca de coesão social, capital social, autoexpressão e identidade, memória e patrimônio, e uma relação balanceada entre cidades e povoados dentre as jurisdições nacionais, e entre assentamentos humanos e suas zonas rurais do interior.

Em diversas conferências e encontros internacionais, como no Fórum Urbano Mundial12 e no próprio Habitat III, o tema espaços públicos tem sido debatido com maior frequência, considerando que o direito a espaços públicos de qualidade está inserido no contexto do Direito à Cidade. Importante destacar que no item “b” do parágrafo 13 da Nova Agenda Urbana, dentre os componentes do Direito à Cidade, previu-se que as cidades e aglomerados urbanos:

(b) Sejam participativos; promovam o compromisso cívico; criem sentimentos de pertença e apropriação entre todos os seus habitantes; priorizem espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis, verdes e de qualidade, amigáveis para as famílias; fortaleçam interações sociais e intergeracionais, expressões culturais e participação política de forma adequada, e propiciem coesão social, inclusão e segurança em sociedades pacíficas e plurais, nas quais as necessidades dos habitantes são satisfeitas, reconhecendo-se as necessidades específicas dos que se encontram em situações vulneráveis.13

Assim, dentre os componentes da cidade como bem comum, estão os espaços públicos de qualidade como forma de garantir maior interação social, participação política, expressões socioculturais, apoiar a diversidade e fomentar a coesão social, para a construção de cidades mais seguras visando o cumprimento das necessidades de todos os habitantes.

Na perspectiva do Direito à Cidade quanto à necessidade de distribuição espacial de forma socialmente justa e equilibrada, importante considerar que o espaço público é um dos componentes que visa assegurar melhor qualidade de vida dos habitantes e, portanto, deve ser garantido de forma justa e espacialmente distribuída principalmente nas regiões mais periféricas das cidades, que geralmente são ocupadas pela população menos favorecida, que mais necessita de investimentos em infraestrutura urbana. Garantir o Direito à Cidade é fazer valer a dignidade do ser humano para o fim de proporcionar a melhor qualidade de vida dos cidadãos.14

A criação de espaços públicos de qualidade nas regiões mais periféricas da cidade proporciona maior equidade, evita a segregação e polarização de tensões sociais, reduz significativamente os índices de criminalidade e violência, principalmente porque espaços públicos passam a ser cenários de coesão social, prática cultural para a valorização de expressões artísticas locais.15

Outra importante consideração é que espaços públicos verdes são fundamentais para a sustentabilidade ambiental, como meio de mitigação para os efeitos das mudanças climáticas, especialmente ao absorver carbono da atmosfera, em razão de seu papel fundamental para o sistema de drenagem de água, moderador de temperatura solar, assim como para contribuir para o habitat natural de animais.16

No planejamento urbano das cidades, há recomendação de que gestores públicos devem preocupar-se em planejar a criação e recuperação de espaços públicos mais verdes com conectividade no plano de mobilidade, com ênfase na proximidade à moradia e na acessibilidade, considerar a possibilidade de atribuir formas diversas de utilização, como, por exemplo, além da finalidade recreativa, apoiar a inclusão social e expressão cultural, assim como garantir a participação social e evitar a tendência de privatização dos espaços públicos.17

Em 2011 foi expedida a Resolução 23/4 da ONU-Habitat sobre Desenvolvimento Urbano Sustentável através do Acesso aos Espaços Públicos,18 que objetivou convidar gestores públicos a formular e implementar políticas públicas urbanas de desenvolvimento sustentável que considerem a justiça social, a resiliência, a utilização de espaços públicos como forma de apoiar a diversidade cultural, social, econômica e convergências ambientais em condições urbanas seguras e de equidade de gênero em harmonia e equilíbrio com a proteção do ambiente natural, cultural, histórico, em processos inclusivos que impeçam a segregação e exclusão social e considerem a necessidade de prover espaços públicos urbanos seguros a todos os cidadãos, especialmente as mulheres, meninas e outros grupos vulneráveis.

Em outro documento temático da ONU-Habitat, preparatório à Conferência ONU-Habitat III, produzido em encontro realizado em Nova York em 31 de maio de 2015, espaço público foi definido como sendo “todos os lugares de propriedade pública ou de uso público, acessível e desfrutável por todos sem necessidade de pagamento e sem fins lucrativos”, incluindo ruas, espaços abertos e instalações públicas.19

Os espaços públicos podem ter diversas formas espaciais, abertos ou fechados, tais como parques, ruas, calçadas, caminhos que ligam aos parques, espaços verdes entre prédios, praias, bibliotecas, escolas, entre outros.

Os espaços públicos e sua apropriação pelos habitantes são de fundamental importância, especialmente para garantir o exercício da cidadania de forma digna, que contribua para melhorar a qualidade de vida das pessoas, seja para o lazer, apoio à cultura, de forma segura e que promova a diversidade, sendo este um dos pilares fundamentais definidos na Nova Agenda Urbana.

Outra importante consideração a respeito do tema é a valorização econômica que o espaço público gera sobre o preço das propriedades residenciais próximas. Estudos indicam que “o espaço público bem gerido incentiva a confiança de investimento, por exemplo, o volume de negócios em uma grande avenida em Londres aumenta entre 5-15% depois de investimentos em um espaço público das proximidades”.20

A valorização econômica que foi gerada em decorrência da criação de espaços públicos em determinadas hipóteses e localidades pode ser capturada como forma de contribuição para os recursos financeiros necessários à própria criação de novos espaços públicos em bairros menos favorecidos, sendo objeto do presente estudo os instrumentos jurídicos que Municípios e o Distrito Federal podem utilizar para induzir a captura da mais-valia por meio de cobranças de contrapartidas urbanas e destiná-las à criação de espaços públicos de qualidade.

 

2  Diretrizes da política urbana e instrumentos jurídicos que possibilitam a cobrança de contrapartidas urbanas

O Direito à Cidade é um direito difuso e coletivo, de natureza indivisível, em que figuram como titulares desse direito todos os cidadãos, das presentes e futuras gerações. A concepção do Direito à Cidade inclui no rol de direitos habitar, usar e participar da produção de cidades justas, inclusivas, democráticas e sustentáveis. Além disso, a interpretação do Direito à Cidade deve ocorrer à luz da garantia e da promoção dos direitos humanos, compreendendo os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais reconhecidos internacionalmente a todos.

No Brasil, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), ao regulamentar os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, instituiu no art. 2º diretrizes básicas que objetivam ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, interessando à análise do presente estudo a garantia do direito a cidades sustentáveis (incisos I e II), o planejamento do desenvolvimento das cidades (inciso IV), a oferta de equipamentos urbanos e comunitários (inciso V), a ordenação e controle do uso do solo (inciso VI), a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização (inciso IX), a recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos (inciso XI) e a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído (inciso XII).

Sobre o tema,

A cidade, como espaço onde a vida moderna se desenrola, tem suas funções sociais: fornecer às pessoas moradia, trabalho, saúde, educação, cultura, lazer, transporte etc. Mas, como o espaço da cidade é parcelado, sendo objeto de apropriação, tanto privada (terrenos e edificações) como estatal (ruas, praças, equipamentos etc.), suas funções têm de ser cumpridas pelas partes. Isto é, pelas propriedades urbanas. A política urbana tem, portanto, a missão de viabilizar o pleno desenvolvimento das funções sociais do todo (a cidade) e das partes (cada propriedade em particular).21

O Estatuto da Cidade definiu no inciso VI do art. 2º a ordenação e controle do uso do solo justamente para nortear que a política urbana deve instituir a ordem urbanística na perspectiva de garantir o direito a cidades sustentáveis, buscando de forma equilibrada as várias funções em si, sejam elas moradia, trabalho, espaços públicos, infraestrutura, lazer, entre outros, preservando-se as gerações presentes e futuras.

Além disso, o Estatuto da Cidade, em seu artigo 2º, inciso IX, define como diretriz, para que seja possível alcançar os objetivos da política urbana, a justa distribuição de ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização, assim como a recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos (inciso XI).

A criação de tais diretrizes advém de evolução da atividade e consolidação de entendimentos no campo do Direito Urbanístico, que alterou a relação do sistema sobre a propriedade privada plena, no âmbito do Direito Civil (C.C., art. 1228), a considerar que o direito de propriedade deve cumprir a sua função social, assim como a faculdade de construir está relacionada com o poder de o Poder Público conceder índices que aumentam a capacidade de potencial de construção.

Esse fenômeno é conhecido originalmente como solo criado, que segundo Lira (1997) “Cria-se o solo quando se gera área adicional de piso artificial não apoiada diretamente sobre o solo natural. Cria solo quem cria piso artificial”.22 É inegável que essa ação do Poder Público agrega valorização significativa ao imóvel e beneficia o proprietário. Outro aspecto importante a ser considerado é a correlação direta existente entre a intervenção do Poder Público, que possibilita maior adensamento no terreno, e, por outro lado, a necessidade de aumentar a capacidade de suporte da infraestrutura básica pelo número de habitantes estimados, em razão da concessão de maiores índices de potencial construtivo. A consequência dessa correlação é o Poder Público ter o custo mais elevado para os investimentos em infraestrutura básica.

Sobre o desejado adensamento visando otimizar o uso da infraestrutura urbana pela aplicação do instrumento da outorga onerosa do direito de construir, estudos esclarecem que deve haver certo cuidado com a aplicação do instrumento, tendo em vista que a autorização de maior coeficiente de aproveitamento não traz necessariamente um aumento de densidade. Na cidade de São Paulo, em bairros como Tatuapé e Vila Madalena, houve decréscimo populacional, com a troca de perfil econômico dos moradores, por um público de mais alta renda, que opta por áreas construídas maiores.23 As limitações urbanísticas são medidas de interesse público, uma vez que atingem indistintamente todos os indivíduos da coletividade e limitam o exercício de direitos individuais em benefício do bem comum da sociedade.

Neste contexto, o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade significa garantir a todas as pessoas o acesso aos equipamentos urbanos, ao transporte, ao saneamento básico, a habitação digna para que possam usufruir das atividades urbanas de educação, lazer, saúde e trabalho. Significa também planejar e executar as intervenções urbanas de acordo com a sustentabilidade para que a cidade cumpra sua função também no futuro, a democracia para que a participação popular seja efetiva e a justiça social com redução das desigualdades sociais e melhoria da qualidade de vida.24

E continua Meirelles (2017), expondo em sua obra:

as imposições urbanísticas podem e devem abranger todas as atividades e setores que afetam o bem-estar social, na cidade e no campo, nas realizações individuais e na vida comunitária. Para isto, o Urbanismo prescreve e impõe normas de desenvolvimento, de funcionalidade, de conforto e de estética da cidade, e planifica suas adjacências, racionalizando o uso do solo, ordenando o traçado urbano, coordenando o sistema viário e controlando as construções que vão compor o agregado humano, a urbe.25

Em cidades grandes onde há escassez de terra nua disponível, o desafio é ainda maior, o que exige técnicas de gestão, proteção de áreas públicas existentes e meios eficazes para criação de novos espaços públicos e verdes como forma de garantir o cumprimento da função social da cidade. Justifica-se, portanto, que haja justa distribuição dos ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização, assim como a recuperação dos investimentos do Poder Público que tenham resultado na valorização dos imóveis.

Considerando que o presente estudo visa analisar a criação de espaços públicos de qualidade, especialmente por meio da utilização de recursos financeiros obtidos da arrecadação de contrapartidas urbanas de outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso, as formas de controle e participação popular para a correta destinação dos recursos ao cumprimento da função social da cidade, importante explorar os instrumentos disponíveis que podem ser utilizados nos Planos Diretores Municipais, na consideração de que, para integral aplicação das disposições contidas no Estatuto da Cidade, é necessária a produção normativa de competência municipal, conforme interpretação dos arts. 5º, 25, 30, 32, 35, 36 e 40 do Estatuto da Cidade.

No âmbito Municipal e do Distrito Federal, o Plano Diretor é considerado o instrumento básico do planejamento urbano que deve, conforme orientação de Saule Júnior (2002), “obrigatoriamente conter as normas disciplinadoras dos critérios e exigências fundamentais para a propriedade atender sua função social, sendo essas normas constitucionalmente vinculantes para o setor privado”.26

Ao plano diretor é incumbida a tarefa de estabelecer como normas imperativas aos particulares e agentes privados as metas e diretrizes da política urbana, os critérios para verificar se a propriedade atende sua função social, as normas condicionadoras do exercício desse direito, a definição dos critérios para a utilização dos instrumentos estabelecidos no Estatuto da Cidade, tais como a outorga onerosa do direito de construir, as operações urbanas consorciadas, o direito de preempção, a transferência do direito de construir, e as zonas especiais de interesse social.27

Assim, para o cumprimento das diretrizes básicas contidas no art. 2º e para implementação dos instrumentos jurídicos elencados no art. 4º do Estatuto da Cidade, cabe aos Municípios e ao Distrito Federal estabelecer em seus Planos Diretores tais instrumentos, interessando à análise do presente estudo a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso. O direito de preempção previsto no art. 26 do Estatuto da Cidade consiste na possibilidade de o Município ou o Distrito Federal exercer opção preferencial para a aquisição de todos os imóveis postos no mercado, conforme as áreas definidas no Plano Diretor, pelo mesmo preço e condições da oferta em mercado.28

Apesar de o direito de preempção ser instrumento jurídico também destinado para a criação de espaços púbicos de lazer e áreas verdes, conforme previsão contida no inciso VI do art. 26 do Estatuto da Cidade, tal instrumento deixa de ser analisado com maior aprofundamento no presente estudo, uma vez que o direito de preempção se mostra oneroso aos cofres públicos. Do mesmo modo, o instrumento da desapropriação deixa de ser abordado no presente estudo em razão de exigir do Poder Público alto investimento e representar solução onerosa aos cofres públicos para a criação de espaços públicos, uma vez que a desapropriação nos termos do art. 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal impõe que a indenização seja justa, prévia e em dinheiro.

Convém destacar que o Estatuto da Cidade, apesar de ser uma norma consagrada em âmbito nacional que representou avanços ao desenvolvimento de políticas urbanas, é uma norma de eficácia intermediária, já que é vinculada aos Planos Diretores para sua efetivação, uma vez que os instrumentos jurídicos, caso não recepcionados, não têm qualquer aplicação. Nesta medida, os recursos advindos de arrecadação de outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso apenas são possíveis para os Municípios e/ou para o Distrito Federal que tenham eventualmente recepcionado tais instrumentos jurídicos.

Na maioria dos Municípios brasileiros, a constatação é que tais instrumentos mesmo em cidades grandes não foram recepcionados e deveriam ser na ocasião da revisão do Plano Diretor Municipal, para assim impor a justa distribuição dos ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização, assim como a recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos, como oportunidade para o cumprimento pleno da função social da propriedade e da cidade.

 

3  Origem histórica da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso e a relação com a criação de espaços públicos

Historicamente, a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso decorre do conceito do solo criado. Com a evolução da tecnologia da construção civil, por meio da intensificação da utilização dos terrenos, surgiram edificações com a possibilidade de multiplicação do número de pavimentos pela ocupação do espaço aéreo ou do subsolo. O debate sobre o tema surgiu pela inspiração de lei francesa e do conceito de plafond legal de densité (“teto legal de densidade”), com o entendimento de que para alteração de limites e condicionantes ao direito de construir o proprietário deveria oferecer contrapartidas ao Poder Público.29

Assim, o sistema normativo para regular o fenômeno do solo criado teve o seu primeiro registro na denominada Carta de Embu, que define solo criado como “toda edificação acima do coeficiente único, quer envolva a ocupação de espaço aéreo, quer a de subsolo”.30 Nas considerações preliminares da Carta de Embu, há o registro dos fundamentos que justificavam a necessidade de normatização do instituto, que vale fazer a transcrição:

(i) Há no território urbano áreas favoráveis a diferentes tipos de atividades;

(ii) A maior propensão a algumas atividades tende a incrementar o valor dos imóveis em algumas áreas, nas quais haverá forte pressão por um maior aproveitamento – ensejado pelo avanço tecnológico nas técnicas construtivas – destes terrenos, levando a um maior adensamento nestas áreas;

(iii) Este processo sobrecarrega a infraestrutura urbana;

(iv) A possibilidade de adensamento, trazida pelo avanço tecnológico, não é necessariamente inconveniente;

(v) No entanto, as normas urbanísticas habitualmente limitam tal adensamento, gerando uma valorização desigual dos imóveis, favorecendo aqueles que podem ser mais aproveitados do ponto de vista de multiplicação da utilização de sua área pela ocupação do espaço aéreo ou do subsolo;

(vi) O direito de propriedade é condicionado pelo princípio da sua função social, o que permite a adstrição do seu uso e disposição a limites ou condições ditados por critérios de relevância social;

(vii) Exemplos desses condicionamentos são encontrados na legislação de parcelamento do solo, pela qual se condiciona a divisão dos imóveis urbanos à doação de áreas para uso público ou social.31

Os pressupostos inseridos na Carta de Embu, portanto, traziam a ideia de que a mais-valia econômica proporcionada ao imóvel em decorrência de ação do setor público, que autoriza edificar além do coeficiente de aproveitamento básico, deve ser recuperada como forma de compensação ao reequilíbrio urbano. A respeito do coeficiente de aproveitamento básico:

Haverá em cada cidade um potencial de, digamos, solo criável correspondente à diferença entre o coeficiente de aproveitamento básico estabelecido para cada área dentro da zona urbana (art. 28, §2º) e o limite máximo passível de ser aproveitado (art. 28, §3º), este último balizado pela disponibilidade de infraestrutura e o incremento de adensamento alvitrado.32

Apesar de a Carta de Embu não discorrer com profundidade a respeito da outorga onerosa de alteração de uso, a mesma lógica do conceito do solo criado foi aplicada para instituir no art. 4º, inciso V, “n” do Estatuto da Cidade a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso como instrumento jurídico. Considerando a lógica de que um imóvel urbano só pode ser utilizado em conformidade com o uso determinado por lei para a zona em que está localizado é que o Estatuto da Cidade criou a possibilidade de cobrança de contrapartida urbana em Planos Diretores municipais na hipótese de ser autorizada a alteração de uso.33

Quanto à criação de espaços públicos com recursos obtidos de contrapartidas urbanas, outro fundamento que justifica a sua cobrança está inserido no mecanismo que já se pensava quando da elaboração da Carta de Embu, que é o da proporcionalidade entre solos públicos (equipamentos públicos, ruas, praças, áreas verdes etc.) e solos privados, em que haveria necessidade de reequilibrar a proporção entre áreas públicas e áreas privadas.

Tal mecanismo não foi recepcionado pelo Estatuto da Cidade, mas o que se observa é que desde meados de 1976 já se pensava na necessidade de reequilíbrio na relação público-privada e proporcionalidade nas relações quando da criação de solos adicionais por autorização do Poder Público, especialmente na relação entre solos públicos e solos privados criados artificialmente.

 

4  Da cobrança de outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso

Estudos apontam que

A utilização do instituto da outorga onerosa certamente será benéfica para aqueles que sempre viveram à margem dos benefícios da urbanização, na medida em que vai gerar recursos financeiros que se destinarão, necessariamente, a custear ações urbanísticas de interesse social, tais como a regularização fundiária, a execução de programas habitacionais, a implantação de equipamentos urbanos e comunitários, a criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes etc. Mas alguém vai ter que pagar por isso e estes, certamente, vão se sentir prejudicados.34

Entretanto, é certo que os recursos provenientes da cobrança de outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso beneficiam toda a coletividade de forma indistinta e “(…) a ninguém interessa o caos urbano decorrente do exacerbado processo de urbanização, gerando angústias, insegurança, violência e perda da qualidade de vida”.35 Outra linha de raciocínio reitera que:

Os encargos e os benefícios referentes ao processo de urbanização devem ser distribuídos de forma justa, o que significa reconhecer o princípio da diferença na apropriação do espaço urbano. Isto é, os proprietários que utilizarem com mais intensidade o potencial referente à capacidade da infraestrutura urbana, e por este fato, se beneficiam da utilização maior dessa potencialidade, devem, em contrapartida, devolver para coletividade parte da riqueza que foi gerada em decorrência de seu empreendimento.36

Sobre a outorga onerosa do direito de construir, o art. 28 do Estatuto da Cidade dispõe que o Município ou o Distrito Federal, por meio do Plano Diretor, poderá estabelecer as áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário. Conforme ensinamentos o “coeficiente de aproveitamento dos terrenos edificáveis é variável em função das determinações da legislação de uso e ocupação do solo, dependendo da definição da densidade estabelecida para as diversas zonas da cidade”.37

Com relação à outorga onerosa de alteração de uso, do mesmo modo, o art. 29 do Estatuto da Cidade define que o Plano Diretor poderá determinar as áreas nas quais poderá ser permitida a alteração de uso do solo, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário. Esclarece-se, ainda, que, “uma vez outorgado esse direito, a alteração somente vale para seu beneficiário, pois a outorga não transforma a zona, por exemplo, comercial em industrial só porque um imóvel situado em seu interior teve seu uso alterado para industrial”.38

Já quanto ao beneficiário da outorga onerosa, considerando que o próprio Estatuto da Cidade não vinculou a palavra proprietário, mas sim beneficiário, a doutrina entende em sentido mais elástico que se enquadram como beneficiários o proprietário, o superficiário, o usucapiente, o enfiteuta, o locatário, o concessionário ou o permissionário de uso de bem público, desde que autorizados pelos respectivos proprietários a adquirir o direito de construir, não sendo este um rol exaustivo, mas sim exemplificativo, podendo ser enquadrado como beneficiário todo aquele que tenha condições de exercer o direito de construir.39

A respeito da contrapartida, Gasparini (2008) ensina que:

Contrapartida é a coisa de interesse público que o beneficiário da compra do direito de construir acima do coeficiente de aproveitamento entrega ao Município. É expressão ampla que significa uma compensação, recompensa, ou contrapeso em dinheiro (entrega de certo valor), em bens (doação de área para alargamento de via pública), em construção (execução de um viaduto) ou em serviço (execução de pintura de um prédio público) por alguma coisa que foi feita.40

O Município e/ou o Distrito Federal devem estabelecer por lei específica a fórmula da cobrança, os casos passíveis de isenção e a contrapartida do beneficiário da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso, nos termos do que dispõe o art. 30 do Estatuto da Cidade. Importante destacar que no plano municipal gestores públicos de política urbana podem optar pela instituição da outorga onerosa do direito de construir e deixar de estabelecer a outorga onerosa de alteração de uso, como no caso do Plano Diretor Estratégico de São Paulo. Contudo, não parece razoável que a outorga onerosa seja estabelecida tão somente para a alteração de uso e deixe de ser exigida a outorga onerosa do direito de construir.

Quanto ao critério de cálculo das outorgas onerosas, a lei municipal deve fixar critérios claros e objetivos, especialmente com a finalidade de evitar interpretações subjetivas, assim como buscar equilíbrio e razoabilidade para que não seja o valor excessivo que pode desestimular o desejado adensamento, assim como não pode ser irrisório, sob pena de não se alcançar o retorno desejado e a adequada recuperação dos investimentos do Poder Público.  A respeito do tema, ainda tratando sobre o instituto do solo criado, definido no Estatuto da Cidade como outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso:

É preciso muito cuidado coma aplicação do solo criado. Como vimos, este pode servir a objetivos muito diferentes. Por esta razão é fundamental que este (e outros instrumentos de intervenção no uso da ocupação do solo) sejam trabalhados como instrumentalização dos objetivos da política urbana expressos no Plano Diretor.41

Rolnik ainda continua:

Como já apontamos ao comentar a história da construção do instrumento, a geração de recursos para investimentos municipais pode ser um subproduto para a outorga onerosa, porém este não deveria ser encarado como objetivo principal, um vez que isto poderia acarretar ou uma flexibilização (e no limite), a destruição do controle do uso e ocupação do solo ou um encarecimento tal dos produtos imobiliários que inviabilizaria ainda mais seu acesso por fatias mais amplas da população.42

Assim, para estabelecer a forma de cálculo, alinhados com os objetivos da política urbana expressos no Plano Diretor, vários podem ser os critérios para a cobrança, podendo ser desde a fixação de uma parcela do valor venal do imóvel até mesmo uma estimativa de mercado do potencial econômico que foi atribuído ao solo criado, desde que o valor não exceda o próprio valor do imóvel, pois não haveria razão para cobrança de contrapartida urbana em que o valor do acessório (solo criado) é superior ao valor do principal (terreno).43

(…) se tal valor for excessivo não haverá estímulo para o desejado adensamento por meio dessas outorgas. Por outro lado, se for pequeno não se obterá o resultado financeiro esperado, embora o adensamento populacional tenha sido alcançado, e com isso a sobrecarga de usos dos equipamentos urbanos e comunitários. Cabe aos órgãos técnicos municipais buscarem esse valor de modo a que seja o mais justo possível, levando em conta, inclusive, o fato de que nem todos os potenciais beneficiários valer-se-ão desse direito. Por certo, outros poderão ser os parâmetros adotados pelo Município face às suas peculiaridades na determinação dessa fórmula ou mesmo na fixação do valor do metro quadrado do solo virtual.44

A respeito da fixação de critérios de cálculo para cobrança da outorga onerosa de alteração de uso, a tarefa do gestor público é da mesma forma estabelecer critérios objetivos e claros, assim como especificar se somente determinadas hipóteses de alteração de uso que induzem a sobrecarga da infraestrutura justificam a cobrança, assim como qual o critério para recuperação da mais-valia gerada, considerando as mesmas razões expostas, de que não deve ser irrisório, tampouco excessivo. Assim “embora permitida essa alteração do uso do solo, sua instituição e aplicação devem ser bem planejadas pelo Município, sob pena de mais tumultuar do que ordenar os interesses comunitários”.45

 

5  Da destinação dos recursos das outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso para criação de espaços públicos

O art. 31 do Estatuto da Cidade prescreve que “Os recursos auferidos com a adoção da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso serão aplicados com as finalidades previstas nos incisos I a IX do art. 26 desta Lei”. Ao comentar a destinação dos recursos obtidos das outorgas onerosas, então, assevera-se que:

Trata-se de dispositivo essencial, pois se presta a evitar que os recursos auferidos com a alienação do potencial construtivo se transformem em receitas públicas desvinculadas do cumprimento das finalidades de ordenação e planejamento urbano. Como de início sustentamos o solo criado, como bem urbanístico pertencente a toda a coletividade, deverá ter sua utilização adstrita ao cumprimento da função social da cidade, o que se efetiva também com a consecução das finalidades previstas no art. 31.46

Analisando-se os incisos I a IX do art. 26 do Estatuto da Cidade, a lei municipal ou distrital deverá destinar os recursos auferidos da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso para: I – regularização fundiária; II – execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; III – constituição de reserva fundiária; IV – ordenamento e direcionamento da expansão urbana; V – implantação de equipamentos urbanos e comunitários; VI – criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes; VII – criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; ou VIII – proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico, sendo que houve veto para a hipótese anteriormente prevista no inciso IX.

O inciso VI do art. 26 do Estatuto da Cidade, portanto, elenca a criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes como uma das hipóteses para a destinação dos recursos auferidos por meio da arrecadação de contrapartidas de outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso do solo, não mais ou menos importante que todas as demais hipóteses. O art. 52 do Estatuto da Cidade estabelece ainda que, sem prejuízo da punição de outros agentes públicos envolvidos, incorre em improbidade administrativa o Prefeito quando deixar de aplicar os recursos obtidos com as contrapartidas de outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso em desacordo com o previsto no art. 31 do Estatuto e, portanto, sem a observância das hipóteses elencadas no art. 26 da mesma lei.

Gasparini (2008) aponta que

Qualquer outra aplicação está proibida, incorrendo o Prefeito ou o Governador Distrital em improbidade administrativa caso desatenda essa determinação, sem prejuízo da punição de eventuais agentes públicos envolvidos e da aplicação de outras sanções.47

Aquele agente público, Prefeito ou Governador Distrital, portanto, que agir em afronta à legalidade incorrerá em ato de improbidade administrativa contra o Princípio da Administração Pública, sujeito às penalidades previstas no inc. III do art. 12 da Lei Federal nº 8.429/92.48 A literatura aponta, também, que:

A destinação dos recursos deve compreender os objetivos da política urbana, de reduzir as desigualdades sociais e atender as funções sociais da cidade. Portanto, o plano diretor deve adotar, como critério para especificar a destinação dos recursos do Fundo, intervenções que atendam os interesses difusos como a implantação e recuperação de áreas verdes e preservação do meio ambiente, mediante a destinação de recursos para o saneamento básico.49

Para a destinação dos recursos, em geral, a lei municipal ou distrital deve prever que os recursos provenientes das outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso serão destinados a um Fundo de Desenvolvimento Urbano e terão a finalidade de apoiar ou realizar os objetivos, diretrizes, planos e projetos urbanísticos e ambientais, como no caso do Plano Diretor Estratégico de São Paulo – PDE e do Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal – PDOT.

Da mesma forma, dentre as regras a serem estabelecidas por lei específica para o Fundo, comumente denominado FUNDURB, deverá haver designação de Conselho Gestor, onde se permite a participação de representantes da sociedade civil, garantindo a gestão democrática e o cumprimento da função social em consonância com o que estabelece o inciso II do art. 2º do Estatuto da Cidade, como forma de garantir que a destinação dos recursos não seja desvirtuada.

Importante, ainda, que a lei específica municipal ou distrital apresente no rol de prioridades de investimentos a criação de espaços públicos verdes preferencialmente nas zonas de interesse social e regiões periféricas, onde há maior carência de espaços públicos verdes e de qualidade, pois “Não seria justo, considerando que os bairros da periferia têm carência de infraestrutura urbana, que estes recursos fossem priorizados para melhorar a aparência dos bairros mais nobres”.50

 

6  Conclusão

O Estatuto da Cidade e as recomendações no plano internacional decorrentes especialmente da Habitat III, que culminou na edição da Nova Agenda Urbana, devem nortear Municípios e o Distrito Federal na atualização de suas normas urbanísticas locais, incluindo especialmente a necessidade de criação de espaços públicos urbanos mais verdes em áreas de interesse social e regiões periféricas, como forma de garantir o exercício da cidadania de forma digna e proporcionar melhor qualidade de vida a todos os cidadãos em apoio ao bem-estar social.

As outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso constituem instrumentos de política urbana que podem contribuir de forma bastante eficaz para que os recursos financeiros arrecadados pelo Município ou Distrito Federal sejam destinados ao Fundo de Desenvolvimento Urbano e efetivamente aplicados na criação de espaços públicos mais verdes.

O Município e o Distrito Federal, apoiados em estudos técnicos, devem estabelecer critérios para definir as hipóteses de incidência, a delimitação da área de aplicação, a forma de cálculo das outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso, além de serem claras e objetivas com o fim de evitar interpretações subjetivas, devem observar o equilíbrio e a razoabilidade para que não seja o valor excessivo que pode desestimular o desejado adensamento, assim como não pode ser irrisório, sob pena de não se alcançar o retorno desejado e a adequada recuperação dos investimentos do Poder Público.

Para que os recursos provenientes das outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso sejam destinados para a criação de espaços públicos mais verdes, importante que a lei específica municipal ou distrital indique no rol de prioridades de investimentos a destinação específica preferencialmente para a aplicação nas zonas de interesse social e em regiões periféricas.

Da mesma forma, é de fundamental importância a criação de Conselho Gestor do fundo de arrecadação, geralmente denominado Fundo de Desenvolvimento Urbano, e que tenham como membros representantes da sociedade civil, em observância ao inciso II do art. 2º do Estatuto da Cidade, que prevê a gestão democrática das cidades por meio da participação da população e de associações representativas.

 

Special assessment tax for buildings and for change of use and destination of resources for the creation of public spaces

Abstract: The absence of an appropriate urban planning for cities caused a disorderly growth. Public spaces are becoming increasingly commercialized and replaced by private buildings. In social interest housing areas and in the suburbs of the cities there is almost no investment in infrastructure, nor guarantee of green public spaces. In accordance with the Right to the City, urban public spaces provide better quality of life for people, welfare and dignity, help in social cohesion and inclusion, generate equity, improve safety, and are associated with the environmental sustainability acts. To create greener public spaces with lesser costs to the public funds, it is possible that resources from the special assessment tax for building and for change of use are intended to be used for this purpose. The aim of this study is to present orientation and documents executed in international conferences, as well as to present urban laws that establishes the creation of green public spaces and areas of social interest and in the suburbs, in compliance with the social function of the city.

Keywords: Public spaces. Right to the city. Special assessment tax for building and for change of use. Destination of resources.

 

Referências

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1 IPEA, 2016.

2 OSORIO; MENEGASSI, 2002, p. 43.

3 OSORIO; MENEGASSI, 2002, p. 43.

4 SILVA et al., 2016, p. 252.

5 NAÇÕES UNIDAS, 2015.

6 JACOBS, 2014, p. 180.

7 SAULE JÚNIOR, 2014, p. 302.

8 SAULE JÚNIOR, 2014, p. 303.

9 SAULE JÚNIOR, 2014, p. 304.

10 A Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III) aconteceu em outubro de 2016, em Quito, no Equador, e contou com a participação de chefes de estado e de governo, ministros, governos subnacionais e locais, deputados, organizações da sociedade civil, comunidades locais, representantes do setor privado, profissionais, comunidades científica e acadêmica, e demais atores relevantes, para adotar a Nova Agenda Urbana – NAU.

11 O documento Policy Paper 1, “Documento de Políticas da Habitat III. 1 – Direito à cidade e cidades para todos”, de 26 de fevereiro de 2016, orienta em todo conteúdo a fim de garantir o Direito à Cidade, entre outros componentes, políticas e ações que devem ser adotadas no planejamento local das cidades para espaços públicos de qualidade com caráter multifuncional.

12 O Fórum Urbano Mundial (“The World Urban Forum” WUF) é a principal conferência mundial sobre questões urbanas. Foi criado em 2001 pelas Nações Unidas para examinar uma das questões mais urgentes que o mundo enfrenta hoje: a rápida urbanização e seu impacto nas comunidades, cidades, economias, mudanças climáticas e políticas. Organizado e convocado pelo UN-Habitat, o Fórum tornou-se um dos encontros mais importantes em nível internacional para trocar opiniões e experiências sobre desafios urbanos.

13 NAU, 2016, p. 5.

14 OLIVEIRA et al., 2015, p. 82.

15 HABITAT III, 2015.

16 HABITAT III, 2015.

17 HABITAT III, 2016.

18 A Resolução 23/4 da ONU-Habitat sobre Desenvolvimento Urbano Sustentável através do Acesso aos Espaços Públicos em consideração ao Direito à Cidade recomenda às autoridades formular e implementar políticas públicas relacionadas aos espaços públicos.

19 HABITAT III, 2015, p. 1.

20 HABITAT III, 2015, p. 3 e 4.

21 SUNDFELD, 2002, p. 54.

22 LIRA, 1997, p. 165.

23 ROLNIK, 2002, p. 10.

24 RIBEIRO et al., 2014 p. 654.

25 MEIRELLES, 2017, p. 547.

26 SAULE JÚNIOR, 2002, p. 78.

27 SAULE JÚNIOR, 2002, p. 78.

28 OSORIO; SOSO, 2002, p. 190.

29 MARQUES NETO, 2002, p. 226.

30 CARTA DE EMBU, 1976.

31 MARQUES NETO, 2002, p. 226-227.

32 MARQUES NETO, 2002, p. 233.

33 GASPARINI, 2008, p. 212.

34 DALLARI, 2007, p. 21.

35 DALLARI, 2007, p. 21.

36 SAULE, 1997, p. 298.

37 SILVA, 2012, p. 255-256.

38 GASPARINI, 2008, p. 213.

39 GASPARINI, 2008, p. 199.

40 GASPARINI, 2008, p. 202.

41 ROLNIK, R. et al., 2002, p. 207.

42 ROLNIK, R. et al., 2002, p. 207.

43 MARQUES NETO, 2002, p. 241.

44 GASPARINI, 2008, p. 203.

45 GASPARINI, 2008, p. 213.

46 MARQUES NETO, 2002, p. 243-244.

47 GASPARINI, 2008, p. 215.

48 GASPARINI, 2008, p. 215.

49 SAULE, 1997, p. 301.

50 SAULE, 1997, p. 301.

Como citar este conteúdo na versão digital:

Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:

OLIVEIRA, Ilka Suemi Nozawa de. Das outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso e da destinação dos recursos para a criação de espaços públicos. Revista Brasileira de Direito Urbanístico – RBDU, Belo Horizonte, ano 5, n. 8, jan./jun. 2019.
Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=255547>. Acesso em: 1 out. 2019.

Como citar este conteúdo na versão impressa:

Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico impresso deve ser citado da seguinte forma:

OLIVEIRA, Ilka Suemi Nozawa de. Das outorgas onerosas do direito de construir e de alteração de uso e da destinação dos recursos para a criação de espaços públicos. Revista Brasileira de Direito Urbanístico – RBDU, Belo Horizonte, ano 5, n. 8, p. 99-120, jan./jun. 2019.